FIQUE DE OLHO NOS SEUS DIREITOS: COMBATE AO RACISMO
O Comitê para a Promoção dos Direitos Humanos, Igualdade Étnico-Racial e de Gênero, do IFSP Câmpus Presidente Epitácio, coloca em foco a garantia de direitos e chama a atenção da comunidade para ficar de olho nos seus direitos nesse período de quarentena, para combater e minimizar as consequências da pandemia pelo COVID-19.
O oitavo tema abordado na campanha educativa “Fique de olho nos seus direitos em tempos de pandemia”, promovida pelo comitê, será o combate ao racismo.
A onda de protestos vista nos Estados Unidos em decorrência da morte de George Floyd após uma abordagem policial exacerbada tornou-se assunto frequentemente tratado pelos veículos de comunicação nacionais e internacionais. Ao correr o mundo todo, a cena de um oficial branco ajoelhado sobre o pescoço de um homem negro que dizia não conseguir respirar escancarou o racismo que, na verdade, nunca deixou de existir por lá. Por outro lado, a notícia de que o menino João Pedro, de apenas quatorze anos, perdeu sua vida ao ser atingido nas costas por tiros disparados por soldados brasileiros demonstrou, uma vez mais, que o desrespeito pelas vidas de pessoas negras também é uma realidade encontrada por aqui.
A ocorrência destes dois fatos trágicos não é mera coincidência. Brasil e Estados Unidos foram, respectivamente, os países que mais receberam escravizados trazidos do continente africano por mais de trezentos anos. Isto, por si só, explica as mortes em questão? Não, obviamente. Mas permite que a complexidade do tema possa começar a ser explorada. Afinal, o sistema escravocrata implantado nas regiões americanas por colonos europeus funcionou sob a égide de uma hierarquização social que estabeleceu a superioridade dos indivíduos brancos em relação aos demais, reservando aos negros uma posição de extrema subalternidade. A insistente reprodução de termos pejorativos como “serviço de preto”, “tuas negas” e “cor do pecado” verbaliza heranças negativas da cultura escravista em nosso dia a dia e exemplifica quanto concepções ultrapassadas ainda influenciam nosso cotidiano.
Aliás, a própria abolição oficial da escravatura não representou um rompimento absoluto com a situação anterior, especialmente em terras brasileiras. Com a perspectiva de literalmente branquear a população, o Estado incentivou e financiou a entrada maciça de imigrantes europeus para o Brasil. Considerados, então, mais adequados ao trabalho assalariado, italianos, portugueses e espanhóis rapidamente ocuparam a maioria das vagas disponíveis e, consequentemente, dificultaram a inserção dos antigos escravos e seus descendentes no mercado de trabalho. O sistema educacional republicano, por sua vez, responsável pela formação intelectual e profissional de grande parte da população, mostrou-se segregacionista e privilegiou, veladamente, a presença de alunos brancos.
Além disso, reformas urbanas baseadas em princípios sanitaristas e estéticos importados da Europa levaram forçadamente os moradores pobres, em grande parte negros, para regiões distantes das áreas centrais, reservando a eles habitações precárias em locais periféricos de difícil acesso. Assim, construiu-se um quadro de marginalização política, econômica e social com o qual a maioria dos brasileiros negros convive desde o início do século passado.
Dados publicados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) endossam esta afirmação. De acordo com levantamentos elaborados pelo órgão em 2018, a população preta e parda representava 64% dos desempregados na época. A pesquisa também revelou que o rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas na ocasião era 73,9% superior ao das pretas ou pardas. Dentre os que exerciam cargos gerenciais, somente 29,9% eram pretos ou pardos. Estes também compunham 75,2% do grupo formados pelos 10% da população com menores rendimentos.
No Âmbito educacional, a situação melhorou, mas ainda está longe de ser ideal. A taxa de analfabetismo entre pretos e pardos diminui de 9,8% (2016) para 9,1% (2018), mas continuou maior que a de brancos (3,9%). Dentre os estudantes pretos ou pardos com idade entre 18 e 24 anos, o índice de matriculados em cursos de ensino superior saltou de 50,5% (2016) para 55,6% (2018), mas continuou aquém dos 78,8% registrados entre os brancos da mesma faixa etária. A representação política foi outro ponto que se revelou preocupante: apenas 24,4% dos deputados federais, 28,9% dos deputados estaduais e 42,1% dos vereadores nomeados na última eleição são pretos ou pardos.
Ademais, o estudo expôs que pretos e pardos tinham 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que brancos, especialmente o grupo composto por indivíduos do sexo masculino, com idade entre 15 e 29 anos. Em relação às condições de moradia, 44,5% dos pretos ou pardos viviam em domicílios com a ausência de pelo menos um serviço de saneamento básico (coleta de lixo, abastecimento de água e esgotamento por rede). Para piorar, o nível de adensamento domiciliar excessivo (mais de três moradores para cada cômodo utilizado como dormitório) registrado entre os pretos e pardos foi praticamente o dobro do que o observado entre os brancos. Estes dois últimos tópicos, inclusive, ajudam a entender as razões pelas quais a epidemia de covid-19 é particularmente difícil de ser enfrentada por esse núcleo populacional.
Entretanto, apesar de ser bastante esclarecedora a respeito da influência da cor na composição das desigualdades sociais no Brasil, a investigação feita pelo IBGE apresenta um ponto passível de discussão: a reunião de pretos e pardos no agrupamento que pode ser entendido genericamente como negro. Ao ser entrevistado pelo Portal Geledés, Jorge Luíz Petrucelli, pesquisador da instituição, explicou que essas nomenclaturas realmente geram opiniões distintas, mas certo é que quanto mais escura for a pele de uma pessoa, maior será o grau de discriminação sofrida por ela.
Certeiro também é o fato de que, mesmo evidenciado em números, o racismo e seus efeitos devastadores continuam parecendo invisíveis para uma parcela de nossa sociedade ainda influenciada pelo discurso de Gilberto Freyre, criado na década de 1930. O antropólogo pernambucano defendeu a tese de que uma das características basilares do povo brasileiro seria a harmonia social proveniente da miscigenação entre brancos, negros e indígenas desde o período escravista. Há tempos, contudo, essa perspectiva foi refutada pelos estudos de intelectuais como Florestan Fernandes e Kabengele Munanga, capazes de descontruir o chamado “mito da democracia racial” e atestar que a discriminação racial sempre fez parte das estruturas políticas, econômicas e sociais brasileiras, institucionalizando-se de forma sinuosa e efetiva ao longo da história do país.
Deste modo, negar o racismo é tão eficiente quanto varrer o lixo para debaixo do tapete. Mas, ao enxerga-lo, o que fazer? Primeiramente, entender que ele não é um problema reservado às vítimas. Pelo contrário, é um empecilho que atinge a todos (as) e atrapalha muito o desenvolvimento da nação. Em segundo, respeitar e apoiar a luta daqueles que sempre o enfrentaram. Não fosse pelos embates já travados pelo movimento negro, assim como por intelectuais, atletas, artistas e demais segmentos sociais, o quadro atual de discriminação racial seria muito pior. É preciso oferecer resistência cotidiana a esse mal que corrói a humanidade. É significativo enfatizar que vidas negras importam em momentos nos quais o racismo está em plena evidência, mas não é suficiente para superá-lo.
Por último, é imprescindível defender e incrementar as concepções educacionais pautadas pelo multiculturalismo e diversidade. Por mais que estejam prescritas nos documentos oficiais, ainda existem muitas barreiras a serem transpostas até que elas se concretizem efetivamente. Mas esse é o caminho. O Brasil precisa ter o cuidado de preparar melhor as próximas gerações e movimentar esforços para que erros cometidos até agora não se perpetuem. Ninguém nasce automaticamente preconceituoso e discriminador. As influencias diárias são parte da formação do comportamento humano. Portanto, para que o Brasil realmente se torne uma nação acolhedora, tal qual afirma ser, é necessário encarar e superar tudo aquilo que o torna excludente. E o racismo, indubitavelmente, é parte disso.
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